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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Uma visita real

Por Fernando Coelho

 As costas de Abidã doíam.. Seus pulsos doíam ainda mais. Mover repetidas vezes a corda de arco sobre o furador, aplicando pressão no alto da ferramente pontiaguda cobrava seu preço. O suor gotejava da sua testa e caía sobre o segmento curvado de madeira destinado a ser parte de um raio de roda de uma carroça. Mais difícil era encarar o fato de que ele ainda tinha quatro outras seções, nas quias precisava fazer furos para os raios. Seu  pai se curvava sobre o banco duro e tosco, aparando e arrumando as peças para que se encaixassem.
O ar denso e poeirento da pequena marcenaria piorava as coisas, mas Abidã não se queixou. Essa era a sua vida. Seu pai era carpinteiro, assim como seu avô. Sua vida seria cercada por madeira e trabalho duro. No entanto, o trabalho na marcenaria era melhor que o trabalho que eles haviam feito na semana anterior. Por três dias, ele e seu pai tinham colocado vigas de telhado sobre as paredes de pedra de uma nova residencia. O trabalho ao ar livre era muitas vezes mais agradável. Contudo, ao meio-dia, o sol minava suas forças. Ele não tinha ideia de como seu pai era capaz de continuar trabalhando.
 Abidã respirou fundo e soprou a serragem liberada pelo furo feito. Em seguida, percebeu os sons de sandálias que se arrastavam sobre os degraus de pedra da porta de entrada, como se fosse a chegada de diversas pessoas. Era muito cedo para a refeição do meio-dia. Sua mãe não traria comida fora de hora.
 Abidã virou-se, ainda segurando as ferramentas nas mãos.
 O rei Salomão estava parado à porta.
 "Majestade", disse o pai de Abidã, e fez uma leve reverência.
 Salomão sorriu, entrou na marcenaria cheia de sujeira e abraçou seu amigo. "Faz muito tempo, Zera."
 Zera retribuiu o abraço. "Faz, sim, Majestade. As horas rapidamente se transforma em meses."
 Abidã sentiu um calafrio. O rei estava em sua humilde marcenaria, uma simples oficina de pedra e barro, com um telhado esburacado. Era assim com todos os carpinteiros, cujos dias se gastavam no trabalho para os outros, deixando-lhes pouco tempo para cuidar das próprias casas e locais de trabalho.
 "Abidã", Salomão exclamou. A voz do rei preencheu todo o espaço.
 "Majestade" Abidã largou as ferramentas e se aproximou. "Não sabia que o senhor estava vindo." Ele se sentiu constrangido por causa de suas roupas sujas e manchadas de suor.
 "Você foi ao palácio tantas vezes. Achei justo vir até aqui. Além disso, não via seu pai há muito tempo.  Receio ter me comportado de modo inadequado e desprezado meu amigo."
 "Não, Majestade, Zera afirmou. "O senhor fez mais por mim do que um homem da minha posição tem  o direito de pedir. Seu trabalho com Abidã foi fora do comum. Nas últimas semanas, ele insiste em acordas antes de mim e vem para a oficina muito cedo. Fica também até mais tarde, muito depois que os outros da área se retiraram."
 "É verdade, Abidã?"
 "Sim, Majestade. Estou procurando ser diligente como o senhor ensinou."
 O rei concordou com um gesto de cabeça, mas Abidã percebeu nele uma certa tristeza. Salomão dirigiu a palavra para Zera: "Trouxe comida e bebida para compartilhar uma refeição com a sua família."
 " O senhor é muito generoso, Majestade."
 Salomão sorriu. "Também trouxe o suficiente para seus vizinhos. Você pode reservar seu tempo para banquetear conosco?"
 "Naturalmente, Majestade." Zera abriu um grande sorriso. "O senhor honra minha casa e minha família."
 "O prazer é meu, meu amigo. Você pode apresentar sua casa para meus criados? Eles cuidarão de tudo."
 "Sim, Majestade." Zera saiu da marcenaria rapidamente.
 "E você, Abidã, vai se juntar a nós?"
 Abidã ficou confuso. "ainda não terminei meu trabalho , Majestade."
 "Estou vendo." O rei suspirou. "Tenho mais uma lição pra você, Abidã. Vejo que não cheguei muito cedo."
 "Não entendo."
 Salomão afastou algumas ferramentas do banquinho e se inclinou sobre ele.
 "Um lugar para você se sentar..."
 "Não, Majestade, eu estou bem."
 "O que esta envergonhando você, Abidã?" , perguntou Salomão, sorrindo.
 "A sujeira da nossa marcenaria, Majestade. O senhor merece coisa muito melhor. Se soubesse que o senhos estava vindo, poderia ter arrumado a oficina."
 "Abidã, nunca sinta vergonha do seu trabalho ou do lugar onde você trabalha. Essa oficina não me ofende, admiro o trabalho que é feito aqui."
 "Obrigado...Muito obrigado, Majestade."
 "Eu prestei um desserviço a você, filho."
 "Como?  Ah, não, Majestade. O senhor dividiu sua sabedoria comigo. Sou uma pessoa melhor por causa disso."
 "A sabedoria vem em etapas. É verdade que você está trabalhando mais do que seu pai?"
 "Sim. Incentivei meu pai a me dar mais tarefas."
 Salomão assentiu com um movimento de cabeça. "Pense sobre este dito: "Não te esgotes buscando riquezas, tem a sabedoria de mostrar moderação." (Provérbios, 23:4)
 Abidã não precisou decifrar o significado. De todos os provérbios que Salomão compartilhara com ele, esse era o mair claro e o mais condenatório. No entanto, Abidã repetiu o provérbio diversas vezes.
 "Sua expressão me diz que você compreendeu o significado", afirmou Salomão.
 "Compreendi, Majestade."
 "Diga-me a verdade contida nele."
 Abidã tomou fôlego. "Significa que não é sábio buscar riquezas."
 "Não filho. Você está enganado. Não é errado o fato de buscar riquezas. "
 'Então, o que é errado, Majestade?"
 "Você deve descobrir, Abidã."
 Abidã removeu a serragem dos cotovelos e proferiu a ultima parte do provérbio: "... tem a sabedoria de mostrar a moderação. Moderação. Sabedoria de mostrar moderação...". Balançou a cabeça e, então, uma ideia lhe ocorreu. "Há um equilíbrio entre buscar riquezas e moderação."
 "O significado?", Salomão indagou, sorrindo.
 Abidã franziu as sobrancelhas. "Não faz sentido para mim, Majestade. Por que um homem teria moderação na busca de riquezas?"
 "Para viver, Abidã. Para viver."
 "Para viver?"
 "Conquistar riquezas é sábio; trocar a felicidade pelas riquezas é tolice"
 Salomão se pôs de pé e começou a andar com passos lentos. "Tudo tem um preço, Abidã, não é? CHegar cedo na oficina de seu pai exige que você pague com um descanso menor. Vejo que você e seu pai estão trabalhando em rodas de carroça. "
 "Sim", respondeu Abidã, com orgulho. "Temos muitas mais para fazer. É a maior quantidade de rodas de carroça que já fizemos para um único cliente. Eu consegui o cliente."
 "Você merece elogios Abidã. Isso mudou as coisas?"
 "Mudou. O dinheiro ajudará minha família e desenvolverá nosso negócio.'
 "Sua mãe gosta de rodas de carroça?"
 A pergunta pegou Abidã desprevenido. "Não, Majestade."
 "Ela gosta de você?"
 "Sim."
 "Ela trocaria você por rodas de carroça?"
 "Claro que não, Majestade", respondeu Abidã, se ajeitando.
 "Então não a troque por ganhos rápidos."
 As palavras afligiram Abidã. "Não estou..."
 "Você não está o quê, Abidã?"
 Abidã abaixou a cabeça;
 "Quando eu era jovem, Abidã, tinha o hábito de ser impaciente nas viagens. Sempre queria chegar ao destino. Levei algum tempo até aprender que a viagem é muitas vezes mais interessante que o destino. Você compreende?"
 Abidã respondeu afirmativamente com um movimento de cabeça. "Devo aprender a aproveitar a viagem e não só pensar no destino."
 "Exatamente, Abidã. Trabalhe duro. Conquiste suas riquezas, mas aprecia aqueles a seu redor. Aproveita a sua família. Os dias perdidos nunca podem ser recuperados. Desenvolva o negócio do seu pai e, no momento em que se tornar o seu negócio, desenvolva-o mais, mas saiba quando mostrar moderação. Aproveite o dia. Aproveite o trabalho. Aproveite a viagem. Escolha o contentamento para hoje, mas pense no futuro."
 "Sim, Majestade."
"Agora, volto a perguntar: você se juntará a nós para o banquete?"
 Abidã deu uma olhada nas suas ferramentas e contemplou a madeira em que estivera trabalhando. Voltaria ali amanhã, ele decidiu. O melhor trabalho que poderia fazer agora era passar o tempo com seu rei, sua família e seus vizinhos. "Sim, Majestade. Tomarei parte do banquete com o senhor."
 "Ótimo. Talvez eu lhe conte uma história sobre seu pai.'
 Abidã riu. "Tenho uma pergunta, Majestade."
 "Pergunte."
 "É verdade que o senhor tem mil esposas e concubinas?"
 "É verdade. A maioria são casamentos políticos."
 "Como é ter tantas mulheres?"
 "Ah, Abidã, você nem queira saber."


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