Eu acredito que Deus envia anjos para a Terra. Mas não exatamente como aqueles em que nossa querida editora Eddie Van Feu acredita e sobre os quais já escreveu algumas dezenas de livros. Eu acredito que os anjos são aquelas pessoas que aparecem em nossas vidas de repente, quando mais precisamos, e algumas vezes desaparecem sem deixar rastros. Alguns têm o papel mais difícil e penoso de ser anjos de multidões, ajudando e guiando milhões de pessoas em tempos difíceis, salvando suas vidas da morte, esquecimento, miséria ou mediocridade. Eu acredito que Deus tenha enviado um anjo com o nome de Jim Henson.
por Ricky Nobre
Jim Henson nasceu em Greenville no Mississipi em 24 de setembro de 1936. Viveu seus primeiros anos em Leland, enquanto seu pai trabalhava no Ministério da Agricultura. Passou uma infância feliz explorando com seus amigos as margens do riacho perto de sua casa. Desde cedo, possuía grande fascínio por televisão e arte. Sua avó, pintora, bordadora e criadora de colchas (as tradicionais colchas de retalhos americanas) incentivava o pequeno Jim a criar, se expressar através de sua imaginação e apreciar o mundo à sua volta. Quando Jim começava o ginásio, sua família se mudou para Maryland e foi nessa época que ele e seu irmão Paul começaram a experimentar uma variedade de expressões artísticas. Em 1954, ainda no colegial, ele começou sua carreira televisiva como animador de bonecos em uma emissora de TV local em Washington, nas manhãs de sábado. No ano seguinte, já calouro da Universidade de Maryland, conseguiu um programa de cinco minutos exibido duas vezes por dia numa emissora afiliada à NBC, o Sam and Friends. O programa era um embrião dos Muppets, com música, humor esperto e truques de manipulação. Na Universidade, Jim conheceu Jane Nebel, que se tornaria sua primeira parceira na televisão e sua esposa.
O sucesso de Sam and Friends levou Henson a participações em diversos programas em rede nacional, como The Steve Allen Show, The Jack Paar Show e The Today Show. Rapidamente, Jim começou a fazer literalmente centenas de comerciais humorísticos para empresas por todo o país. Em 1961, Jim e Jane já tinham a Muppets, Inc. e se juntaram ao manipulador e roteirista Jerry Juhl, que se tornaria um de seus maiores colaboradores. Com as aparições em rede nacional cada vez mais freqüentes, mudou-se para Nova Iorque em 1963 e aumentou seu time de colaboradores com o construtor de marionetes Don Sahlin e o manipulador Frank Oz. Juntos criaram o primeiro Muppet de sucesso, o cão Rowlf, que aparecia regularmente no The Jimmy Dean Show entre 1963 e 1966. Com uma ótima equipe montada, Henson pôde desenvolver seu talento de cineasta em uma série de filmes experimentais, não apenas com marionetes mas também live actions e documentários.
O grande salto para a fama internacional foi em 1969, quando estreou o programa concebido pela produtora da TV educativa americana Joan Ganz Clooney, Vila Sésamo. Reconhecendo o talento de Henson para criar peças curtas e engraçadas com marionetes, Clooney lhe pediu que criasse uma galeria de personagens para povoar a Vila Sésamo. Enio & Beto, Come-come, Gugu, Funga-funga e Garibaldo foram apenas alguns das dezenas de personagens que saíram da Muppet, Inc. para ajudar a compor um dos programas mais revolucionários e premiados da televisão mundial, que entre outras ousadias tinha uma variedade étnica que só se via na vida real, nunca na televisão. Mesmo não sendo uma concepção de Jim Henson, Vila Sésamo projetou seu talento a um patamar ainda mais alto do que os seus próprios programas conseguiram e o ajudou a aprimorar ainda mais suas técnicas cinematográficas ao criar dezenas que filmetes que ensinavam a ler e a contar. Respeitando a inteligência infantil e procurando fazer com que crianças de todas as classes e raças se vissem na TV e se sentissem parte de um todo, Vila Sésamo acumulou uma absurda quantidade de prêmios. Só de prêmios Emmy foram mais de cinqüenta!!! Jamais deixou de ser produzido e está se preparando para entrar em sua 31ª temporada! No Brasil foi exibido com partes produzidas pela TV Cultura e pela Rede Globo. Os quadros apenas com marionetes eram os originais de Jim Henson e os com atores e bonecos eram produzidos no Brasil com um elenco que incluía Aracy Balabanian, Armando Bogus, Sônia Braga e Milton Gonçalves.
As crianças adoravam os Muppets, mas Henson queria atingir um público mais amplo. Após anos tentando vender a idéia do Muppet Show, ele finalmente conseguiu apoio de um produtor de Londres, Lord Lew Grade. A produção se iniciou em 1975 e rapidamente os Muppets conquistaram o mundo. Sempre com um ilustre convidado a cada programa, o Muppet Show mostrava as dificuldades de um grupo de artistas em realizar seu show de variedades semanal. Desorganização, guerra de egos, uma infame dupla de críticos e o dono do teatro eram os obstáculos sempre encarados por essa trupe de anti-heróis (inesquecível o episódio em que eles são despejados do teatro e têm que fazer o show numa estação ferroviária). Junto com seu humor espertíssimo e anárquico, sensibilidade também pontuava o show. Quem aí se lembra do número musical anti-racista onde Caco cantava “Não É Fácil Ser Verde”? Caco, Miss Piggy, Fozzie, Scooter, Gonzo, Rowlf, Doutor Dentes e sua banda Eletric Mayhem com o inesquecível Animal, são alguns dos que nos encantaram em duas séries e seis longa-metragens, O Mundo Mágico dos Muppets, The Great Muppet Caper, Os Muppets Conquistam Nova Iorque, O Natal dos Muppets, Muppet Treasure Island e Os Muppets no Espaço e o atual Muppets - O filme. Nos anos 80 estreou o desenho Muppet Babies. Na contramão da onda idiotizante daquela década que transformava tudo quanto é personagem em versão kids, Muppet Babies foi inspirado em uma cena de Os Muppets Conquistam Nova Iorque e mostrava os bebês Muppets descobrindo o mundo e inventando o seu próprio sem sair do quarto. Misturando cenas de filmes antigos, a série seguia a linha da Vila Sésamo de estimular a criação infantil e, como o Muppet Show, tinha um humor que também conquistava os adultos. Conquistou o Emmy de melhor série de animação por quatro anos seguidos. Somados às séries, contabilizam-se 40 Emmys para os Muppets e mais vários outros prêmios dentro e fora dos Estados Unidos, incluindo 8 Grammys. Na década de 90 os Muppets voltaram à TV com o Muppets Tonight, que já acumulou algumas indicações ao Emmy.
ABERTURA EM PORTUGUÊS DOS MUPPETS
Em 1985 Jim Henson deu um passo que mudaria a cara da indústria do cinema. Baseado na obra do ilustrador inglês Brian Froud, ele criou um filme que é uma jóia rara: O Cristal Encantado. O filme foi uma experiência totalmente feita com marionetes e animatronics, sem atores. Os bonecos se moviam por manipulação ou controle remoto, num realismo impressionante. O mundo de fantasia de elfos e seres florestais e das sombras foi um marco na utilização de animatronics para dar vida a seres encantados e praticamente criou a Jim Henson´s Creature Shop, empresa que concebe, constrói e dá vida a qualquer tipo de criatura que Hollywood encomende e sobrevive mesmo na era da computação gráfica, que foi outra revolução nesse campo. Unindo estas duas técnicas é que a companhia conseguiu o Oscar pelos efeitos visuais do filme Babe, o Porquinho Atrapalhado. O Cristal Encantado pode parecer só mais uma história de fantasia, mas o impacto que teve na época de seu lançamento mantém sua condição de clássico. Seguiu-se então outro trabalho com o visual de Brian Froud, Labirinto, que já misturava bonecos e atores. Estrelado por Jenifer Connely, uma bonequinha por si só, e David Bowie, que também já não parece muito humano, Labirinto teve um impacto bem menor, provavelmente pelo roteiro fraco. As maiores atrações eram o belíssimo visual e as canções originais de Bowie.
Na televisão, Jim Henson continuava criando e produzindo uma grande variedade de trabalhos que primavam pela inteligência, qualidade e bom gosto, quase todos inéditos no Brasil, infelizmente. Fraggle Rock celebrava a paz e a amizade. Jim Henson´s The Storyteller usava os belos bonecos da equipe de Henson para dar nova vida a velhos contos e parábolas, destacando suas metáforas. Entre os roteiristas da série estava Anthony Minghella, diretor e roteirista de O Paciente Inglês. Seguindo linha semelhante, com belas histórias e efeitos especiais, estava o Jim Henson´s Greek Myths, que contava histórias da mitologia grega.
Em 16 de maio de 1990 Jim Henson deu entrada na ala de emergência de um hospital de Nova Iorque, onde morreu 24 horas depois, do que foi diagnosticado como uma “infecção galopante”. De uma hora para outra, a televisão e o cinema se viram órfãos daquele que dedicou sua vida para que a mídia nos desse algo um pouco melhor. Tristemente, Joe Raposo, um grande colaborador de Jim na Vila Sésamo, também faleceu um ano depois. Seu legado, porém, é tão poderoso que continuamos a ouvir os ecos de sua arte. A The Jim Henson´s Company é agora dirigida por seu filho Brian Henson, que continua a criar e produzir diversos seriados e longa-metragens com a qualidade e a tradição de seu pai. Os trabalhos da produtora incluem a sitcom Family Rules, a ficção científica infantil Brats of the Lost Nebula, a ficção exibida no Sci Fi Channel Farscape e o programa para crianças em fase pré-escolar The Bear In The Big Blue House, que é mais ou menos como seria o programa do dinossauro roxo Barney se tivesse um pingo de inteligência. Atuando em TV, cinema, CDs e livros, sempre com uma forte preocupação educativa, as empresas Henson têm hoje um histórico de trabalho que chamou a atenção da Disney, que ultimamente não vem se preocupando com muita coisa além de ganhar dinheiro. Hoje o Disney Channel é a principal vitrine para as recentes produções da Jim Henson Television, incluindo aquele que foi o mais estrondoso sucesso do estúdio após a morte de Jim: Família Dinossauro.
Família Dinossauro talvez tenha sido o último seriado a ter um sucesso realmente estrondoso no Brasil. Com o mesmo apelo amplo dos Muppets, a série se tornou febre ao redor do mundo graças ao extremo carisma de seus personagens e às temáticas sempre pertinentes, atuais e ousadas. Política, mídia, sexo, drogas e blues foram apenas alguns dos temas a serem dissecados. A cada semana um novo estímulo era jogado naquela sociedade pré-histórica (o que torna a analogia com a nossa sociedade ainda mais irônica) com um bom humor e lucidez que hoje só encontram paralelo em David Kelley. É claro que o sucesso milionário não se deve totalmente à inteligência dos roteiros, embora isso tenha sem dúvida garantido uma audiência bem mais ampla do que se poderia esperar. O grande apelo que os personagens e seu universo tinham para todo o tipo de bugingangas, como bonecos, jogos, roupas, CDs, vídeos e toda a tralha de praxe também foi determinante para o sucesso duradouro e até uma certa sensação de onipresença da série. O Baby tornou-se o preferido de todos e seu bordão “não é a mamãe” era repetido em todo o canto. Isso gerava até uma certa frustração. Você tentava discutir com alguém na faculdade sobre a grande sacada do episódio daquela semana, que falava da política externa americana ou da relação da sociedade com os idosos, e todo mundo só lembrava das gracinhas do Baby. Aí você pensava: “será que tem alguém prestando a atenção?”
Mas sem dúvida era uma série mágica, por todos os motivos que pudermos enumerar e mais alguns. Tão arrasadora que conseguiu, de forma quase sobrenatural, fazer com que a Globo exibisse a abertura original desde o dia da estréia, prática que a emissora já havia abandonado uns 15 anos antes. Só quando a série já estava em sua terceira temporada foi que eles voltaram com aquele maldito “Rede Globo apresenta”. A queda na qualidade dos roteiros decretou o fim do seriado que sem dúvida alguma teve a melhor dublagem já realizada no Brasil, chegando ao absurdo de superar as vozes originais, principalmente o trabalho de gênio realizado por Mariza Leal para o Baby.
Jim Henson disse certa vez: “Quando eu era jovem minha ambição era ser uma daquelas pessoas que fazem diferença no mundo. Minha esperança ainda hoje é que eu possa deixar este mundo um pouco melhor do que era pelo fato de eu ter estado aqui”. As centenas de pessoas que trabalham nas empresas Henson são a prova viva e irrefutável de que ele conseguiu o que queria. Todos trabalham em nome do sonho de Jim Henson de fazer a televisão, o cinema, os mercados gráfico e fonográfico cada vez melhores. A partida súbita de Henson deste mundo nos chocou e o mistério envolvendo sua doença não provocou os boatos que eram de se esperar. Talvez tenhamos percebido que não faz diferença. Deus achou que estava na hora e chamou seu anjo de volta. Ele agora deve estar lá, observando o belo mundo que ajudou a construir.
Ricky Nobre, que soletrava aos três anos de idade e tinha um senso de humor que encantava todos os adultos à sua volta, agradece ao seu anjo de todo o coração.
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